Com ataque dentro de escola, guerra de facções no Ceará chega a 'lugar sagrado'
Caso, que deixou dois mortos e três feridos, ocorreu em Sobral, cidade referência em educaçãoA escalada da guerra entre facções criminosas no Ceará fez com que até mesmo escolas deixassem de ser espaços seguros. Na manhã desta quinta-feira (25), dois alunos foram baleados e mortos durante o recreio em um colégio estadual de Sobral, cidade que é referência nacional pelos resultados educacionais.
A Polícia Militar afirma que o ataque está ligado a uma disputa pelo tráfico de drogas na região da escola por grupos criminosos. Com uma das vítimas a polícia diz ter apreendido drogas e uma balança de precisão.
O caso ocorreu na escola estadual Luis Felipe por volta das 9h30, minutos após os estudantes saírem para o intervalo das aulas. Uma câmera de segurança flagrou o momento em que dois homens estacionaram uma moto na rua Coronel José Silvestre, desceram do veículo e caminharam em direção ao colégio. É possível ouvir barulho de tiros. Em seguida, os atiradores subiram na moto e fugiram.

Os estudantes Victor Guilherme Sousa de Aguiar, 16, e Luiz Cláudio Sousa Oliveira Filho, 17, morreram. De acordo com a Santa Casa, dois adolescentes feridos receberam alta hospitalar no início da tarde desta quinta. Um terceiro permanecia sob os cuidados da equipe multiprofissional.
Um dos sobreviventes é um jovem de 16 anos que responde por atos infracionais análogos aos crimes de homicídio, porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, roubo, crime contra a administração pública e dano. Os outros dois que ficaram machucados são adolescentes de 17 anos.
Para César Barreira, fundador do LEV (Laboratório de Estudos da Violência) da UFC (Universidade Federal do Ceará), a situação mostra como algumas cidades cearenses vivem um contexto de "violência difusa".
"É uma violência que invade lugares que, em princípio, seriam sagrados, como escolas, universidades, igrejas. Além disso, há indícios de que a ação tenha sido calculada, premeditada. Ou seja, as facções não temem mais entrar e escancarar sua violência nem mesmo em uma escola."
Sobral está entre as cidades mais violentas do Brasil. Segundo a última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, tem uma taxa de 59,9 homicídios por 100 mil habitantes —a 12ª maior em todo o país.
Ao mesmo tempo, é o município com os melhores índices de alfabetização, e há anos seu ensino fundamental supera rankings nacionais e internacionais. Os resultados foram obtidos por meio do programa municipal Alfabetização na Idade Certa, instituído a partir de 2004, um ano antes de a cidade sair da posição 1.407 do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), em 2005, para chegar ao primeiro lugar no índice com média de 9,1 a partir de 2017. No ano passado, Sobral atingiu nota 9,6.
No início de setembro, a Polícia Civil do Ceará indicou que o CV (Comando Vermelho), originado no Rio de Janeiro, tem aumentado tanto o seu domínio no estado que, em breve, deve assumir o controle total das atividades do crime no Ceará.
O avanço do CV tem se dado sobretudo em áreas que historicamente eram comandadas pelo GDE (Guardiões do Estado), uma facção local que tem como marca a extrema violência e a prática de chacinas.
Em 8 de agosto, o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará, junto à ONG de proteção à infância Visão Mundial, enviou um ofício à Secretaria de Educação do Ceará solicitando a transferência de um aluno da escola Luis Felipe por ele receber ameaças. Nesta manhã, ele estava na unidade e não foi atingido pelos disparos. Um dos mortos era seu vizinho na comunidade Nova Caiçara, dominada pelo PCC (Primeiro Comando da Capital), rival do CV, que atua em Campo dos Velhos, bairro da escola.
Apesar da intensificação recente do confronto entre as facções, especialistas e moradores de Sobral relatam que a cidade já convive há tempos com a violência desses grupos criminosos.
Dois professores de escolas estaduais relataram à meio de comunicação ser comum que alunos sejam impedidos de frequentar as aulas em unidades que estão em áreas dominadas por facções diferentes do local em que moram. Eles pediram para não ser identificados por medo.
Francisco Elionardo Nascimento, professor e coordenador do Covio (Laboratório de Estudos sobre Conflitualidades e Violência) da Uece (Universidade Estadual do Ceará), afirma que em Sobral as facções "têm se mostrado cada vez mais incisivas no funcionamento das escolas, inclusive, operacionalizando o modo como devem funcionar".
Ele ressalta ainda que alunos e professores acabam vivendo em um contexto de insegurança incompatível com o ambiente necessário para o processo educativo.
"A gente percebe os professores muito acuados, afinal eles estão dando aula para os filhos de pessoas com vínculo com as facções. Essas pessoas impõem como a escola deve lidar com questões disciplinares e isso, obviamente, amedronta os professores."
"É muito comum em Sobral esse modelo de execução, em que alguém passa de moto e sai atirando contra um alvo específico. O caso de hoje teve repercussão nacional por acontecer dentro de uma escola, contra alunos. Mas essa é uma realidade com a qual Sobral convive e que se intensificou nas últimas semanas por conta da disputa acirrada entre as facções."
Luiz Fábio Paiva, professor da UFC e coordenador do LEV, também afirma que há muito tempo a violência das facções já adentrou as escolas e faz parte da vida de muitas crianças e adolescentes.
"Esses grupos usam a violência para fazer ser acertos de conta e esses acertos podem acontecer pelos mais variados motivos, desde usar uma camisa ou simplesmente morar em um território que é considerado do inimigo", afirma.
"O tiroteio nos escancara como essa disputa entre facções atinge um local onde crianças e adolescentes deveriam ter suas vidas protegidas. Infelizmente, isso não exatamente uma novidade."
Fonte: Revista40graus e colaboradores